quarta-feira, 28 de maio de 2014

DINHEIRO ESTÁ MINANDO A DEMOCRACIA, diz Michael Sandel


(FOTO: STEPHANIE MITCHELL/DIVULGAÇÃO)

Viramos uma sociedade de mercado onde tudo se compra, argumenta professor de Harvard, um dos filósofos mais conhecidos do mundo

Ele já foi chamado algumas vezes de pop star da filosofia, tem um dos cursos online mais famosos do mundo (que virou uma série de TV com 12 episódios) e é tratado como uma celebridade na Ásia. Por lá, foi considerado a personalidade estrangeira mais influente na China e chegou a dar uma palestra com participação dos ouvintes num estádio para 14 mil pessoas na Coréia do Sul. O professor de Harvard Michael Sandel, palestrante do evento Fronteiras do Pensamento deste ano, ganhou fama internacional aproximando discussões de moral e ética do grande público, que para ele tem “fome” de falar sobre esses temas.

Na entrevista abaixo, ele diz que a falta de debate de grandes temas influenciou o aparecimento dos protestos recentes no Brasil e no mundo e analisa o papel da mercantilização da vida pública na crise das nações, temas de seu mais recente livro, O que o dinheiro não pode comprar: Os limites morais do mercado (Civilização Brasileira).

O senhor tem as aulas mais disputadas dos cursos massivos de Harvard e ficou tão popular que dá palestras em estádios. O que faz tantas pessoas se interessarem pelos temas que trata?

As pessoas estão sedentas por discutir grandes questões de filosofia relacionadas com a vida. Elas estão profundamente frustradas com as democracias pelo mundo, com a política, com os políticos e com os partidos. A razão para isso é que há um vazio no debate público. Hoje, ele não se volta às grandes questões, incluindo a ética e os valores morais – e as pessoas querem discutir ética e moral. Por conta de uma adoção de mecanismos do mercado, os sistemas políticos de muitos países deixaram essas discussões de fora e constituem hoje uma visão estreita e tecnocrática, que não inspira a ninguém. Ou então resumem-se a uma gritaria inócua onde nenhum dos lados ouve o argumento do outro. A política deixou de tratar princípios fundamentais de justiça e do bem comum, que é do que trato em meus livros e palestras. O retorno que tenho com eles refletem uma fome das pessoas de participar da discussão pública de grandes questões.

Por que há esse esvaziamento do discurso público?

'Há uma tendência de cada vez mais o discurso público ser governado pelo pensamento de mercado'
Há duas razões. Uma está no meu livro mais recente [O que o dinheiro não pode comprar: Os limites morais do mercado]. Há uma tendência de cada vez mais o discurso público ser governado pelo pensamento de mercado. Nas últimas três décadas, o mercado dominou muitos aspectos da vida social e esvaziou o debate sobre ética. Um dos apelos de adotar os valores de mercado é que eles parecem resolver todas as controvérsias envolvendo duas partes de uma maneira aparentemente neutra. Parece neutra, mas não é. É um erro assumir que os mercados por si só podem definir uma sociedade justa ou o bem público. A tecnocracia, estreitando o debate a valores de eficiência, empurrou a discussão sobre moral para fora do debate público. A segunda razão é que estamos relutantes em entrar em debates éticos em público porque vivemos em sociedades multiculturais e multiétnicas, onde as pessoas discordam sobre o significado de justiça. Há um medo da discordância, do debate de ideias que podem ofender outros grupos. Por isso, prefere-se recorrer a um pensamento pautado pelo mercado, pretensamente neutro, como um jeito de fugir de controvérsias morais e éticas difíceis.

O fato da política ter sido colocada na mão de técnicos é o que move protestos como os que temos hoje no Brasil?

Sim, essa é a razão para grande parte dos protestos. Uma política puramente tecnocrática é profundamente insatisfatória e as pessoas sabem que esse tipo de política não tenta responder às questões que realmente importam para elas. E então vemos por todo o mundo, incluindo o Brasil, formas alternativas das pessoas se fazerem ouvidas. As pessoas estão procurando alternativas para esse vocabulário tecnocrático da política, que exclui a população.

É o que o senhor chama no livro de sociedade de mercado?

O efeito da adoção dos critérios de mercado em geral na sociedade é que passamos a vender coisas que não deveriam ser vendidas. Há empresas nos Estados Unidos que vendem furar a fila. Lobistas, em vez de esperar nas filas das sessões do Congresso, em Washington, pagam a empresas que contratam mendigos para guardar lugar. Por US$ 150 mil você pode comprar o direito a abater um rinoceronte ameaçado de extinção na África do Sul. Ou, se for preso e tiver dinheiro, pagar um upgrade na sua cela de prisão nos Estados Unidos. Ou ainda há crianças que, como estímulo para a leitura, recebem US$ 2 para cada obra lida. São muitos os exemplos de bens cuja venda é moralmente questionável que passaram a ser vendidos sem que a sociedade fizesse uma discussão disso.

O senhor mostra que algumas vezes esses incentivos não funcionam?

Os economistas, mesmo em seus próprios termos, deixam de lado fatores importantes quando consideram o mercado neutro e pregam usar dinheiro para se comprar tudo. Em alguns casos, fazer isso destrói o valor de uma atitude. Pesquisas mostram que se você cobra uma multa dos pais que chegam atrasados para pegar os filhos na creche, essa multa na verdade pode fazer com que esse comportamento seja adotado por mais pais, que calculam que vale a pena pagar por isso e que atrasar não é algo moralmente condenável. Outros estudos mostram que se você oferece uma porcentagem de dinheiro a jovens que arrecadam fundos para caridades, eles acabam ficando menos motivados e arrecadam menos doações, e não mais. Há levantamentos mostrando que quando se paga as pessoas pela retirada de sangue, acaba-se conseguindo menos sangue do que se o pagamento é proibido e só é permitida a doação. Ou seja, chega a ser menos eficiente.

Mas, ao fazer essa análise, você usa os mesmos critérios de eficiência do mercado que o senhor critica.

Esse é um ponto muito importante. Em termos puramente de eficiência, às vezes os incentivos com o dinheiro dão errado, mas essa não é a única razão para se preocupar com isso. A razão mais profunda é que há valores intrínsecos em algumas atitudes que são destruídos ou reduzidos quando nós passamos a usar uma lógica de mercado. Se pagamos crianças para ler mais livros, mesmo que consigamos estimulá-las a ler mais, nós podemos estar ensinando a lição errada sobre por que o hábito deve ser valioso. Isso pode destruir o valor moral do amor pelo aprendizado, por exemplo. No caso das doações de sangue, pagar pelo sangue corrompeu o sentido moral e cívico de promover causas valiosas. Há um consenso entre economistas de que colocar algo no mercado não altera o valor desse algo. Eu confronto essa ideia em termos econômicos, mas, mais importante, eu também a confronto com argumentos morais.

O senhor costuma citar Rousseau, quando ele diz que “a partir do momento em que o serviço público deixa de ser a principal preocupação dos cidadãos, que preferem servir com o dinheiro e não mais com seu empenho pessoal, o Estado está perto de desmoronar”. Com todos esses exemplos que deu, o Estado está perto de desmoronar?

'Quanto mais coisas o dinheiro pode comprar, menos oportunidades teremos para pessoas de diferentes formações e classes sociais se encontrarem em espaços públicos'
Rousseau teve um insight profundo que se aplica às democracias hoje. Não usaria a palavra desmoronar. Mas diria que, enquanto o dinheiro toma um papel cada vez maior na política e na vida social em geral, a democracia está em risco. A democracia depende de importantes valores que não estão no mercado: espírito cívico, educação, investir em espaços públicos onde cidadãos de classes sociais diferentes se encontram. Quanto mais coisas o dinheiro pode comprar, menos oportunidades teremos para pessoas de diferentes formações e classes sociais se encontrarem em espaços públicos — especialmente com o crescimento da desigualdade. Essa tendência de aumento da desigualdade e da quantidade de coisas que o dinheiro pode hoje comprar são corrosivas para a democracia.

O senhor cita muitos outros exemplos de vendas moralmente discutíveis em suas palestras. Qual é o pior deles?

Puxa... [pausa de 20 segundos]. Um dos exemplos mais extremos é o da fundação de caridade que tenta resolver o problema dos bebês nascidos de mães dependentes de drogas oferecendo um incentivo em dinheiro a elas para que sejam esterilizadas. É uma entidade privada usando um mecanismo de mercado, pagando, para atingir um fim de reduzir o número de bebês nascidos de mães dependentes. Mas os meios são profundamente problemáticos, moralmente falando. Outro caso com implicações mais abrangentes sobre a democracia é o papel crescente que o dinheiro tem em campanhas políticas. É menos chocante porque o dinheiro sempre teve um papel ali. Mas, em diferentes países, de maneiras diferentes, o dinheiro está minando a democracia. Nos Estados Unidos, tivemos uma decisão da Suprema Corte que derrubou tentativas de limitar contribuições de empresas para campanhas políticas. Agora, quase não há restrições. Sei que no Brasil o dinheiro também traz um problema semelhante à política, como uma influência corruptora. Como é aqui?

Aqui, os maiores doadores são as construtoras que mais recebem dinheiro em contratos com o governo. Há uma discussão no país sobre a viabilidade de financiamento público das campanhas para acabar com isso. O senhor tem uma opinião formada sobre o tema?

Tenho uma opinião, mas reflete a experiência que tenho nos EUA, não quero sugerir que tenha as respostas para o contexto brasileiro. De maneira geral, não deveríamos permitir doações de empresas. Cria oportunidade demais para corrupção. Não proibiria contribuições individuais, mas as limitaria a algum nível razoável. Mil dólares por pessoa, talvez. Os limites previnem que qualquer indivíduo muito rico ou qualquer grupo de indivíduos muito ricos dominem o sistema. Permitir pequenas contribuições pode ser ter um efeito democrático porque incentiva os partidos e os indivíduos a ter uma preocupação de conquistar a população. Além disso, pode ser interessante que, para cada contribuição de US$ 100 de um indivíduo, haja uma contrapartida de financiamento público no mesmo valor. O que tem sido discutido aqui?

O Supremo está votando para proibir o financiamento de campanha por empresas e discute-se um teto para contribuições individuais, mas não é certo que nenhuma das duas coisas valha para essas eleições.

Me parece uma boa ideia. Acho também que devemos ter algum financiamento público de campanha, mas não apenas financiamento público. Isso porque há uma discussão delicada sobre como alocar esses fundos. Obrigar candidatos a levantar pequenas somas de dinheiro de um número grande de pessoas é muito melhor do que um sistema onde há contribuições ilimitadas de empresas ou de pessoas com muito dinheiro. Eu também favoreceria tempo de televisão gratuito para os candidatos. Vocês têm isso aqui?

Temos. O tempo depende do tamanho das bancadas no Congresso. 

O risco de se fiar somente nisso é que os partidos estabelecidos têm uma vantagem muito grande em relação aos desafiantes. É uma questão difícil, que não tem uma resposta única, mas o princípio de proibir contribuições de empresas é uma maneira eficiente de coibir corrupção.

Quão perto de viver numa plutocracia [sistema político onde o grupo mais rico exerce o poder] estamos?

Não estamos longe da plutocracia e há uma tendência em direção à ela. Nas últimas três décadas nos aproximamos cada vez mais dessa condição. O que é surpreendente é que isso está acontecendo com quase nenhum debate público. No Iraque e no Afeganistão, por exemplo, havia mais soldados pagos por empresas privadas contratadas pelo governo do que militares que trabalham para os Estados Unidos. Isso aconteceu sem que nenhum debate tivesse sido feito sobre se a população queria terceirizar as forças militares. Um dos meus objetivos no livro é chamar a atenção para essa tendência e discutir onde o mercado serve ao bem comum e onde ele não deve entrar.

O senhor mencionou a importância de espaços públicos. Em várias cidades brasileiras temos parques e praças descuidados enquanto são erguidos ricos condomínios com toda a infraestrutura de parques, espaços comuns e mais segurança.

'A tendência de privatizar o que deveria ser bens e experiências públicas tem esse efeito de erodir a coesão social, de minar nosso senso de comunidade'
É exatamente disso que se trata a sociedade de mercado que falo! Nas últimas três décadas houve cada vez mais segregação econômica. Ricos e pobres não se encontram mais. Nos últimos 30 anos, não fizemos investimentos públicos suficientes em espaços comuns que podem ser compartilhados, como transporte público, parques e escolas. Demos um incentivo àqueles que tinham dinheiro suficiente para fazer investimentos privados em espaços alternativos. Os espaços públicos deixaram de ser um lugar de encontro. Os seguranças privados estão ganhando a preferência e ocupando o papel dos policiais, que são mal pagos e poucos. Só que os seguranças são apenas para os mais ricos. A tendência de privatizar o que deveria ser bens e experiências públicas tem esse efeito de erodir a coesão social, de minar nosso senso de comunidade. Fica difícil nos imaginar como cidadãos com uma identidade comum.

As grandes companhias ocuparam esse espaço comum?

Há 30 anos, quando governos optaram por ter presença menor e fazer menos investimentos em espaços públicos, isso resultou em serviços públicos falhos, em transporte público inadequado, em escolas, hospitais e segurança ruins. Essa falta de investimento abriu o caminho para a iniciativa privada, que passou a, compreensivelmente, fazer investimentos privados nisso. Isso contribui com a segregação.

E, de acordo com o seu livro, corrompe a democracia.

Sim, a democracia requer que pessoas de diferentes origens tenham certas experiências comuns. Como nos esportes, na Copa do Mundo. Mas não basta o esporte para a coesão social. Se não temos espaços públicos, não formamos identidades entre os cidadãos e a democracia é prejudicada.

Por que vozes que se ergueram contra essa mercantilização da vida, como o movimento Occupy Wall Street, não conseguiram reverter essa tendência?

Eles não conseguiram se transformar em partido político. Na verdade, nos EUA, o Tea Party capitalizou mais o descontentamento com Wall Street do que qualquer outro movimento. Ele foi mais efetivo em se organizar politicamente dentro do partido Republicano. O Occupy não conseguiu transferir essa energia numa influência política durável num partido.

Mas os manifestantes não confiam mais em partidos.

Há algumas alternativas. Uma é se mobilizar para influenciar um partido, como o Tea Party fez. A segunda alternativa, formar um novo partido. A terceira é fazer um movimento da sociedade civil que se sustente por si mesmo, mas isso precisa de estrutura para se manter durante o tempo. Os movimentos não conseguiram fazer isso.

Democracia direta, mais referendos e eleições, é uma solução?

Não é a mais adequada. Temos de criar sistemas partidários que são mais sensíveis às questões que realmente importam e não às questões tecnocráticas que estão na discussão política.

Para voltar à questão principal da sua obra, o senhor diz que ainda há coisas que o dinheiro não compra. O quê?

Amor, amizade, espírito cívico, solidariedade. Essas coisas são preciosas exatamente porque não podem ser compradas. Ainda assim o dinheiro chega cada vez mais perto de comprá-las.

Quão perto?

Eu dou alguns exemplos em minhas palestras de que já podemos comprar manifestações de afeto. Por exemplo, há empresas especializadas em fazer discursos de padrinhos em casamentos. Eles passam detalhes dos noivos e a empresa escreve, por exemplo, um discurso emotivo com detalhes pessoais para ser dito durante o tradicional brinde. Ou então empresas que você pode pagar para fazer pedidos de desculpas. Depois de fazer algo errado, um profissional treinado em psicologia vai atrás de se desculpar à pessoa por você.

Chegando tão perto, o afeto algum dia será comprado?

Sinceramente espero que não [risos].


Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2014/05/dinheiro-esta-minando-democracia-diz-michael-sandel.html


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