terça-feira, 11 de outubro de 2011

O ALTO PREÇO DA SEPARAÇÃO - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst)

Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho







O Eu Separado
“Nenhuma dor é tão
mortal quanto a da luta
para sermos nós mesmos".
Ievgêni Vinokurov

O ALTO PREÇO DA SEPARAÇÃO: 

Começamos a vida com uma perda. Somos lançados para fora do útero sem um apartamento, cartão de crédito, um emprego ou um carro. Somos bebês que mamam, choram, se agarram indefesos. Nossa mãe se interpõe entre nós e o mundo, protegendo-nos contra a ansiedade arrasadora. Não teremos nenhuma necessidade maior do que a dos cuidados de nossa mãe.

Bebês precisam de mães. Às vezes, advogados, donas-de-casa, pilotos, escritores e eletricistas também precisam de mães. Nos primeiros anos da nossa vida entramos num processo de desistir de tudo aquilo que devemos abandonar para nos tornamos seres à parte. Mas até aprendermos a tolerar nossa separação física e psicológica, a necessidade da presença de nossa mãe – sua presença literal e real – é absoluta.

Pois é difícil tornar-se um ser à parte, separar-se literalmente e emocionalmente, ser capaz de exteriormente defender-se sozinho e interiormente sentir que se está separado. Temos de suportar perdas, embora possam ser balanceadas pelos ganhos, quando nos afastamos do corpo e do ser de nossa mãe. Mas se nossa mãe nos deixa – quando somos muito novos, despreparados, assustados, desamparados -, o preço desse abandono, o preço dessa perda, o preço dessa separação pode ser alto demais.

Há tempo certo para nos separarmos de nossa mãe.

Porém, a não ser que estejamos preparados para a separação – a não ser que estejamos prontos para deixa-la e ser deixados por ela -, qualquer coisa é melhor do que a separação.

Um garotinho está numa cama de hospital. Assustado e com muita dor. Quarenta por cento do pequeno corpo está coberto de queimaduras. Alguém o encharcou com álcool e então, por incrível que pareça, acendeu um fósforo.

Ele chora pela mãe.

A mãe foi quem o queimou.

Aparentemente, não importa o tipo de mãe que uma criança perde, ou o quanto pode ser perigoso continuar na presença dela. Não importasse ela machuca ou abraça. A separação da mãe é pior do que estar nos braços dela quando as bombas estão explodindo. A separação da mãe é às vezes pior do que ficar com ela quando ela é a própria bomba.

Pois a presença da mãe – da nossa mãe – representa segurança. O primeiro terror que conhecemos é o medo de perdê-la. “Não existe nada semelhante a um bebê”, escreve o pediatra e psicanalista D. W. Winnicott, observando que na verdade os bebês não podem existir sem suas mães. A ansiedade da separação é provocada pela verdade literal de que, sem alguém para tomar conta de nós, morremos.

É claro que o pai pode ser esse alguém. Mas a pessoa encarregada de cuidar do bebê da qual falamos é nossa mãe, de quem podemos suportar qualquer coisa, menos o abandono.

Contudo, somos abandonados pela mãe. Ela nos deixa antes de sermos capazes de entender que vai voltar. Ela nos abandona para trabalhar, para fazer compras, para sair de férias, para ter outro filho – ou simplesmente estando ausente quando precisamos dela. Ela nos abandona para ter uma vida à parte, a sua vida – e precisamos aprender a ter a nossa vida particular também. Mas, nesse ínterim, o que fazemos quando precisamos de nossa mãe – precisamos de nossa mãe! – e ela não está presente?

O que fazemos, sem dúvida, é sobreviver. É claro que sobrevivemos às ausências temporárias. Mas essas ausências nos ensinam um temor que pode nos marcar para toda a vida. E quando nos primeiros anos, especialmente nos seis primeiros anos de vida, somos privados constantemente da mãe que precisamos, e cuja presença desejamos, podemos ser tão prejudicados emocionalmente quanto o garoto encharcado com álcool e queimado. Na verdade, essa privação nos primeiros anos de vida tem sido comparada a uma queimadura ou a um ferimento extenso. A dor é inimaginável. A cicatrização é difícil e lenta. O prejuízo, embora não fatal, pode ser permanente.

Selena enfrenta esse dano todas as manhãs quando os filhos saem para a escola e o marido para o trabalho e, ouvindo a porta do apartamento fechar-se pela última vez; pensa: “Sinto-me sozinha, abandonada, petrificada. Preciso de horas para me refazer. O que acontecerá se eles não voltarem?”

No fim dos anos 30, na Alemanha, quando Selena tinha seis meses, sua mãe começou a luta para sobreviver, saindo todas as manhãs para a fila de alimentos e para vencer a burocracia que cada vez mais dificultava a vida dos judeus. Por uma desesperadora necessidade, Selena ficava sozinha, com uma mamadeira, presa no berço – e, se chorava, suas lágrimas já estavam secas quando, algumas horas depois, a mãe voltava para casa.

Todos os que as conheciam concordavam em dizer que Selena era extremamente boa- uma criança tranquila, sem exigências, de bom gênio, sem problemas, uma criança alegre. E quem a vê agora certamente pensa estar vendo um espírito feliz e brilhante, não marcado por experiências que certamente foram de perda dolorosa.

Mas Selena foi marcada.

Selena é sujeita a crise de depressão. Tem horror ao desconhecido. “Não gosto de aventuras. Não gosto de nada novo”. Diz que suas mais antigas lembranças são de angústia, imaginando o que iria acontecer em seguida. “Tenho medo”, diz ela, “de tudo o que não é familiar para mim.”

Tem medo também de muita responsabilidade: “Gostaria que alguém tomasse conta de mim o tempo todo”. E, embora desempenhando adequadamente o papel de esposa e mãe, arranjou também – no marido, forte e confiável, e em vários amigos mais velhos um substituto do cuidado materno.

As mulheres em geral invejam Selena. Ela é espirituosa, encantadora e cheia de calor humano. Sabe fazer bolos, costurar, gosta de música, gosta de rir. É membro da Phi Beta Kappa – Sociedade de honra nacional, fundada em 1776, cujos membros são escolhidos, como sócios vitalícios, entre os universitários do último ano com destacado desempenho acadêmico – tem dois diplomas de Master, leciona em meio período. E, com seu corpo bem formado, enormes olhos castanhos e bela estrutura facial.

Com a diferença de quem com quase cinquenta anos, Selena continua a ser uma criança, menos uma mulher do que menina. E, finalmente, identificou aquilo que descreve como “algo que me acorda todas as manhãs de minha vida com um gosto horrível na boca e dores na barriga”.

“É zanga”, diz ela, “muita zanga. Acho que me sinto enganada.”

A ideia não é aceitável para Selena. Por que simplesmente não dá graças por estar viv? Observa que seis milhões de judeus morreram, e ela, tudo o que sofreu foi a ausência da mãe. O dano, diz ela, embora permanente, não é fatal.

Somente nas últimas quatro décadas, nos anos seguintes ao nascimento de Selena, começou a ser dada a devida atenção ao alto preço da perda de mãe, ao sofrimento imediato e às consequências futuras das separações, mesmo de curto prazo. A criança, longe da mãe, pode apresentar reações que perduram até muito tempo depois de estarem juntas novamente – problemas de alimentação e de sono, perda do controle da bexiga e dos intestinos, e até diminuição do número de palavras que usa. Além disso, aos seis meses pode se tornar, não apenas tristonha e manhosa, mas gravemente deprimida. E, além disso tudo, a sensação dolorosa conhecida como ansiedade da separação inclui tanto o medo – quando a mãe se ausenta- dos perigos que terá de enfrentar sem ela, quanto o medo – quando estão novamente juntas – de perdê-la outra vez.

Conheço intimamente alguns desses sintomas e alguns desses temores, pois surgiram depois da minha internação no hospital – quando tinha quatro anos – por três meses, praticamente três meses sem mãe, porque naquele tempo os hospitais restringiam rigorosamente as visitas. Anos depois de estar curada, sofri os efeitos da hospitalização. E entre as manifestações da minha ansiedade da separação, surgiu o hábito novo – que continuou até parte da minha adolescência – do sonambulismo.

Um exemplo: numa suave noite de outubro, quando eu tinha seis anos e meus pais – para grande tristeza minha – haviam saído, deixei a cama sem acordar. Fui até a sala, passei pela baby-sister, que estava cochilando, abri a porta e saí de casa. E então, profundamente adormecida, caminhei até a esquina e atravessei o cruzamento movimentado, chegando finalmente ao destino da minha jornada sonâmbula – o corpo de bombeiros.

- O que você quer garotinha? – perguntou um bombeiro atônito mas extremamente carinhoso, procurando não me assustar para que não acordasse.

Contam que, sempre dormindo, eu respondi, alto e bom som, sem hesitar:

- Quero que os bombeiros encontrem minha mamãe.

Uma criança de seis anos pode desejar desesperadamente a presença da mãe.

Uma criança de seis meses pode também desejar desesperadamente a presença da mãe.

Pois, mais ou menos aos seis meses, a criança já pode formar uma imagem mental da mãe ausente. Lembra-se dela e a deseja especificamente, e a ausência provoca sofrimento. E dominada por necessidades insistentes que só a mãe pode satisfazer, sente-se profundamente desamparada e rejeitada. Quanto mais nova a criança, menor é o espaço de tempo – uma vez que esteja já ligada à mãe – em que a ausência é sentida como perda permanente. E embora os cuidados de um substituto a ajudem a tolerar as separações diárias, só aos três anos, gradualmente, começa a compreender que a mãe ausente está viva e intata em outro lugar qualquer – e que vai voltar para ela.

Acontece que a espera pode parecer interminável – pode parecer eterna. 

Pois devemos lembrar que o tempo se acelera com os anos, e que houve uma fase em nossa vida em que medimos o tempo de modo diferente, que então uma hora era um dia, um dia era um mês e um mês era sem dúvida uma eternidade. Não admira que, como crianças, lamentemos a ausência de nossa mãe do mesmo modo que, como adultos, lamentamos nossos mortos. Não admira que, quando uma criança é separada da mãe: “a frustação e a saudade podem leva-la a uma dor desesperada.”

A ausência traz desespero ao coração, e não um aumento do amor.

Na verdade, a ausência produz uma sequência típica de respostas: protesto, desespero, e finalmente alheamento. A criança afastada da mãe e levada para um lugar estranho, sem dúvidas achará a nova vida intolerável. Ela grita, chora, se agita. Protesta porque tem esperança, mas depois de algum tempo, vendo que a mãe não vem... e não vem... o protesto se transforma em desespero, em um estado de ansiedade muda e controlada que pode abrigar um sofrimento indizível. Certas crianças começam apresentar sintomas às vezes imperceptíveis para os adultos a sua volta, pensam que é uma mania, um ‘tic’ da criança, como por exemplo, ficar movimentando freneticamente os braços ou as mãos em um só movimento, com olhos fixos, alheias ao mundo. Entram num mundo inacessível ao adulto, ficam assim se movimentando até exaustão. É uma forma de gastar energia acumulada de sofrimento intenso que ela sente e não sabe explicar. Ela sofre e ninguém percebe que ela está desesperada sentindo falta da mãe. O cheiro, a voz que ela ficou ligada por nove meses. A criança sofre profundamente. É uma dor intensa quando há separação entre ela e sua mãe. Os estímulos externos a fazem esquecer temporariamente esta dor, sorri, brinca, ri, faz gracinhas, mas no íntimo ela quer saber intensamente: onde está a minha mãe?.

Vejamos a descrição feita de Patrick por Anna Freud, três anos e dois meses, que, durante a Segunda Guerra, foi levado para uma creche em Hampstead, Inglaterra e que:

“Garantia a si mesmo e a quem quisesse ouvir, com a maior confiança, que a mãe iria busca-lo, que ela o vestiria com sobretudo e o levaria para casa... Mas tarde aumentou a lista das peças de roupa que a mãe ia vestir nele: ‘Ela vai pôr meu sobretudo e minha calça, ela vai fechar o zíper, e pôr na minha cabeça meu chapéu de duende’. Quando a repetição dessa fórmula ficou monótona e infindável, alguém perguntou se ele não podia parar de dizer sempre a mesma coisa... Ele parou de repetir a fórmula em voz alta, mas o movimento dos seus lábios mostrava que continuava a repeti-la. Ao mesmo tempo, as palavras foram substituídas por gestos que mostravam a posição do chapéu de duende, o sobretudo imaginário sendo vestido, o zíper sendo fechado, etc... Enquanto as outras crianças brincavam com os brinquedos, jogos, faziam música, etc., Patrick, completamente desinteressado, ficava num canto movendo as mãos e os lábios com uma expressão profundamente trágica.”

A necessidade da mãe e tão poderosa que a maioria das crianças desiste do desespero e procura substitutos maternos. Considerando essa necessidade, seria lógico pensar que, quando a mãe perdida finalmente reaparece, a criança vai se atirar alegremente nos seus braços.

Mas não é o que acontece.

Surpreendentemente, a maioria das crianças – especialmente com menos de três anos – pode receber a mãe com frieza, tratando-a com uma atitude distante e apática que quase parece dizer: “Nunca vi esta senhora na minha vida”. É o que chamamos de alheamento – o aprisionamento de todo sentimento, enfrentando a perda de vários modos. Ela castiga a pessoa por ter partido. Serve como disfarce para a raiva, pois o ódio intenso e violento é uma das principais respostas ao abandono. E pode também ser uma defesa – que pode durar horas, dias ou uma vida inteira -, uma defesa contra a agonia de amar outra vez e perder outra vez.

A ausência congela o coração, não aumento o amor.

E se essa ausência for, na verdade, de qualquer papel estável do pai ou da mãe, se a infância é uma série de separações, o que vamos fazer? A psicanalista Selma Fraiberg descreve a atitude de um rapaz de dezesseis anos que entrou com um processo em Alameda County, pedindo indenização de meio milhão de dólares por ter sido colocado em dezesseis casas diferentes, durante seus dezesseis anos. Exatamente qual o dano que ele está alegando? Ele diz que “é como uma cicatriz no cérebro”.

Separações graves no começo da vida deixam cicatrizes emocionais no cérebro porque atacam a conexão humana essencial: o elo mãe-filho que nos ensina que somos dignos de ser amados. O elo mãe-filho que nos ensina a amar. Não podemos nos tornar seres humanos completos – na verdade, é difícil tornar-se um ser humano sem o apoio dessa primeira ligação.

Contudo, algumas argumentam que a necessidade que sentimos de outras pessoas não é um instinto primário, que o amor não passa de um glorioso efeito colateral. O ponto de vista freudiano clássico diz que os bebês encontram, na experiência da alimentação, um alívio para a fome e para outras tensões orais e que, com a repetição do ato de mamar e beber aos goles e da doce saciedade, começam a equacionar satisfação com contato humano. Nos primeiros anos de vida, uma refeição é uma refeição, e gratificação é gratificação. Fontes permutáveis podem satisfazer a todas as necessidades. Com o tempo, a pessoa – a mãe – torna-se tão importante quanto a coisa – a satisfação física. Mas o amor pela mãe começa com o que Anna Freud chama de “amor estomacal”. O amor pela mãe, segundo esta teoria, é um gosto adquirido.

Existe um ponto de vista alternativo, segundo o qual, a necessidade de uma conexão humana é fundamental. Argumenta que somos programados para amar, desde o princípio. “O amor pelos outros aparece”, escreveu o psicoterapeuta Ian Suttie há cinquenta anos, “simultaneamente com o reconhecimento da sua existência”. Em outras palavras, amamos assim que podemos distinguir um “você” separado e um “eu”. O amor é a nossa tentativa de mitigar o terror e o isolamento dessa separação.

O mais conhecido defensor da teoria de que a necessidade da mãe é inata é o psicanalista britânico John Bowlby, o qual diz que os bebês – como os bezerros, os filhotes de patos e de ovelhas e os jovens chimpanzés – comportam-se de modo a estar sempre perto da mãe – A isso ele chama de “comportamento de anexação”, a função de proteger do perigo. Permanecemos perto da mãe, o bebê chimpanzé acha-se protegido contra os predadores que podem mata-lo. Permanecendo perto da mãe, o bebê humano encontra também proteção contra os perigos.

Admite-se que, de modo geral, aos seis ou oito meses o bebê formou uma anexação específica com a mãe. É então que nós todos, pela primeira vez, nos apaixonamos. E seja ou não esse amor ligado à necessidade fundamental de uma conexão humana, como acredito que seja, possui uma intensidade que nos torna extremamente vulneráveis à perda ou até mesmo à ameaça de perda- da pessoa amada.

E se, como estou convencida, uma conexão específica formada nos primeiros meses é vitalmente importante para um desenvolvimento saudável, o preço da quebra do elo crucial – o custo da separação – pode ser muito alto.

O custo da separação é alto quando uma criança de seis meses é deixada sozinha longe da mãe por muito tempo, ou levada de um lar adotivo para outro, ou ainda, deixada num creche em tempo integral – até mesmo na creche de Anna Freud – por uma mãe que promete voltar (voltará?). O preço da separação é alto em situações familiares normais, quando um divórcio, uma hospitalização, uma alteração geográfica ou emocional fragmenta a conexão da criança com a mãe.

O preço da separação pode também ser muito alto quando as mães trabalham não encontram quem tome conta dos filhos ou não podem pagar esse serviço – e mais da metade das mães com filhos de menos de seis anos atualmente trabalha fora! O movimento feminista e a simples necessidade econômica está lançando milhares de mulheres no mercado de trabalho. Mas a pergunta: “O que vou fazer com meus filhos?”, exige resposta melhor do que a resposta dos centros de cuidados infantis de vinte e quatro horas.

“Nos anos em que o bebê e os pais formam os primeiros contatos humanos duráveis”, escreve Selmma Fraiberg, “quando amor, confiança, alegria e auto-avaliação emergem através do amor profícuo dos companheiros humanos, milhões de crianças em nosso país podem estar aprendendo... nos nossos bancos de bebês... que todos os adultos são permutáveis, que o amor é caprichoso, que ligações humanas podem ser investimentos perigosos, e que o amor deve ser reservado para a própria pessoa a serviço da sobrevivência.”
O preço da separação é quase sempre muito alto.

Naturalmente, tem de haver separações nos primeiros anos de vida. E sem dúvida, produzirão tristeza e dor. Mas a maioria das separações normais, dentro do contexto de um relacionamento afetuoso e estável, dificilmente deixará cicatrizes no cérebro. E é certo que mães que trabalham podem estabelecer um relacionamento amoroso, confiante e humano com seus filhos.

Mas quando a separação põe em perigo aquela ligação primeira, torna-se difícil criar confiança, segurança, adquirir a convicção de que durante a nossa vida encontraremos – e merecemos encontrar – pessoas que satisfaçam nossas necessidades. E quando as primeiras conexões são instáveis ou desfeitas, ou mesmo prejudicadas, podemos transferir a experiência e as respostas a ela para aquilo que esperamos dos nossos amigos, nossos filhos, nosso marido, até para nossos sócios comerciais.

Esperando o abandono, ficamos desesperados: “Não me deixe; sem você não sou nada, sem você eu morro!”.

Esperando a traição, procuramos cada falha, cada lapso: “Está vendo? Eu deveria saber que não podia confiar em você”.

Esperando uma recusa, fazemos exigências excessivas e agressivas, com fúria antecipada por saber que não serão atendidas.

Esperando o desapontamento, procuramos garantir que, mais cedo ou mais tarde, seremos desapontados.

Temendo a separação, estabelecemos o que Bowlby chama de conexões iradas e ansiosas. Afastando os que amamos com nossa dependência incômoda. Afastando os que amamos com nossas exigências excessivas. Com medo da separação, repetimos sem lembrar nossa história, impondo novos cenários, novos atores e uma nova produção para nosso passado esquecido, mas ainda tão poderoso.

Pois não estamos sugerindo que podemos lembrar conscientemente experiências da primeira infância, se, por lembrar, queremos dizer refazer a imagem da mãe nos deixando, ou de estar sozinho num berço, ou numa creche aonde não se tem a presença dela, nada e ninguém conseguem substituir, nem mesmo o pai, os avós etc. Nada pode substituir uma mãe para uma criança, nada! Quarenta anos depois, uma porta se fecha com violência, e a mulher é envolvida por ondas de terror primitivo. Essa ansiedade é a sua “lembrança” da perda.
A perda dá origem à ansiedade quando é iminente ou considerada temporária. A ansiedade contém as sementes da esperança. Mas quando a perda parece permanente, a ansiedade – protesto – transforma-se em depressão – desespero – e não só nos sentimos sozinhos, como tristes e responsáveis (ela se foi por minha culpa, por minha causa), sem esperanças (nada posso fazer para trazê-la de volta), desamados (“alguma coisa em mim me faz indigno de ser amado”) e desesperados (“de agora em diante vou me sentir assim para sempre”). 

Estudos demonstram que as perdas na primeira infância nos tornam mais sensíveis às perdas que sofreremos mais tarde. Assim, no meio da vida, nossa resposta à perda de uma pessoa da família, a um divórcio, à perda de um emprego, podem ser causas de depressão grave – a resposta daquela criança desamparada, desesperançada e zangada.

A ansiedade é dolorosa. A decepção é dolorosa. Talvez seja mais seguro não sofrer a perda. E enquanto na verdade não possamos evitar uma morte ou um divórcio – ou evitar que nossa mãe nos abandone -, podemos criar estratégias de defesa contra a dor da separação.

A indiferença emotiva é uma dessas defesas. Não podemos perder uma pessoa amada, se não amarmos. A criança que quer a mãe e cuja mãe nunca está presente pode aprender que amar e precisar é por demais doloroso. E ela poderá, nos seus relacionamentos futuros, pedir e dar muito pouco, investir praticamente nada, e tornar-se indiferente- como uma rocha – porque “uma rocha”, como nos diz a canção dos anos 60, “Não sente dor. E uma ilha jamais chora”.

Outra defesa contra a perda pode ser a necessidade compulsiva de tomar conta de outras pessoas. Ao invés de sofrer, ajudamos os que sofrem, E por meio das nossas bondosas ministrações, aliviamos nossa antiga sensação de desamparo e nos identificamos com aqueles de quem cuidamos tão bem.

A terceira forma de defesa é nossa autonomia prematura. Proclamamos nossa independência cedo demais. Aprendemos muito cedo a não permitir que nossa sobrevivência dependa da ajuda ou do amor de pessoa alguma. Vestimos a criança desamparada com a armadura rígida do adulto autoconfiante.

Essas perdas que estudamos – essas separações prematuras da primeira infância – podem desviar nossas expectativas e nossas respostas, podem desviar nosso modo de enfrentar futuras perdas necessárias das nossas vidas. No livro extraordinário de Marilynne Robinson, Housekeeping, a heroína desolada medita sobre o poder da perda, lembrando: “Quando minha mãe me fazia esperar por ela, estabelecia em mim o hábito da espera e da expectativa, que torna cada momento presente mais significativo do que ele não contém”.

A ausência, ela nos faz lembrar, pode se tornar “gigantesca e múltipla”.

A perda pode conviver conosco durante toda a nossa vida.




Judith Viorst



LEIA TAMBÉM

O ALTO PREÇO DA SEPARAÇÃO - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst








O PROIBIDO E O IMPOSSÍVEL - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorsthttp://robertacarrilho-div.blogspot.com.br/2012/04/o-proibido-e-o-impossivel-perdas.html[


TRIÂNGULOS APAIXONADOS - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst


ANATOMIA E DESTINO - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst


TÃO BOM QUANTO A CULPA - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst




Ainda faltam alguns capítulos... 




Um comentário:

  1. Estou tentando entender alguns comportamentos que tenho e seu artigo me ajudou muito, apesar de difícil encarar tamanha verdade. É doído.

    ResponderExcluir