terça-feira, 11 de outubro de 2011

DE PÉ SEM AJUDA - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst

Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho



“Esta planta gostaria de crescer
E ao mesmo tempo ser embrião;
Aumentar, e contudo escapar
Do destino de tomar forma.
Richard Wilbur

DE PÉ SEM AJUDA

A união completa é uma benção. A separação é perigosa. Contudo, esforçamo-nos para nos afastar. Pois a necessidade de ser uma pessoa diferente tem a mesma urgência que o desejo de se fundir para sempre. E desde que nós, não nossa mãe, demos início à separação, desde que nossa mãe continue ali confiável, é possível arriscar e até ter prazer em ficar de pé sozinho.

Engatinhar do colo do paraíso e explorar.

Ficar ereto nos dois pés e caminhar até a porta.

Sair para a escola, para o trabalho, para o casamento.

Ter coragem de atravessar a rua, e todos os continentes da terra sem nossa mãe.

O poeta Richard Wilbur fala do nosso conflito de união-separação no seu pequeno poema sobre a planta, sobre os humanos, sobre o desenvolvimento. E mesmo reconhecendo claramente a urgência de permanecer primariamente ligado, “algo na raiz”, escreve ele, “mais urgente do que esse impulso”, nos impele para a frente.

É a luta para ser um eu separado.

Mas a separação é, em última análise, uma questão de percepção, não de geografia. Apóia-se no conhecimento de que eu sou distinto de você. Reconhece as fronteiras que restringem e contêm e nos limitam. Está ligado a um ponto central do eu que não pode ser alterado nem levado embora, como uma peça de roupa.

Tornar-se um eu separado não é uma revelação súbita mas um desenrolar no tempo. Evolui, lenta, lentamente, durante certo tempo. E durante nossos três primeiros anos, em estágios previsíveis de separação-individualização, aventuramo-nos numa jornada mais decisiva do que qualquer outra que jamais faremos – a jornada da união completa para a separação.

Todas as partidas subsequentes do conhecido para o desconhecido podem trazer ecos daquela jornada inicial. Sozinhos num quarto estranho de hotel, longe de todos os que amamos, podemos de repente nos sentir ameaçados e incompletos. E cada vez que passamos do seguro para o arriscado, expandindo as fronteiras da nossa experiência, repetiremos – no ato de desfazer uma conexão – algumas alegrias e terrores daquela perda inicial:

Quando descobrimos a liberdade embriagadora e a solidão cheia de pânico da separação humana.

Quando embarcamos naquilo que a psicanalista Margaret Mahler chama de “parto psicológico”.

Nosso nascimento psicológico começa mais ou menos aos cinco meses de idade, quando a criança entra no estágio chamado diferenciação; numa época em que demonstra um estado de atenção “recém-nascida”. Uma época em que afasta o corpo do corpo da mãe, começamos a perceber que ela, e na verdade o mundo todo, existem fora das suas fronteiras – para serem vistos, tocados, para dar prazer.

Segundo estágio, aos nove meses mais ou menos. É uma época de prática audaciosa, quando a criança começa a engatinhar fisicamente para longe da mãe, continuando, entretanto, a voltar para ela como para uma base generosa da qual obtém “reabastecimento emocional”. Lá fora, no mundo tudo é assustador, mas precisamos praticar o talento recém-descoberto da locomoção – além disso, lá estão todas aquelas maravilhas para explorar. E desde que a mãe continue ali como um corpo para ser tocado, como um colo para descansar a cabeça cansada, como um sorriso encorajador de aqui-estou-e-você-está-bem, a criança exuberantemente continua a expandir seu universo físico e seu eu.

A prática leva à perfeição, engatinhar leva a andar, e nesse ponto tão importante do estágio de aprendizado, a locomoção de pé permite tais vistas, tais possibilidades, tais triunfos, que a criança pode se embriagar com a sensação de onipotência e grandeza. Transforma-se numa entusiasta narcisista. E megalomaníaca. Imperial. O dono de tudo o que pode ver. A visão do alto das duas pernas que se movem a seduziu, e ela está apaixonada pelo mundo. Ele, e a criança, são maravilhosos.

Em Algum lugar de todos nós vive ainda aquele piloto, aquele explorador da África, aquele navegador de mares nunca antes navegados. Em algum lugar dentro de nós vive aquele destemido aventureiro. Em algum lugar dentro de nós, se nos foi permitido executar as explorações do estágio de aprendizado, vive um ser exultante que no passado foi capaz de encontrar maravilhas por toda parte. Hoje está disciplinado e controlado, mas se tiver sorte, uma vez outra entrará em contato com aquela auto-embriaguês com aquela sensação de maravilha. Quando Whitman ruge: “Canto a mim mesmo, e a mim mesmo cérebro... Divino sou por dentro e por fora...”, ouvindo o brado bárbaro da criança que começa a aprender.

O aprendizado é perigoso, mas a criança sente-se ávida demais para notar. Machuca-se e sangra e chora e volta para mais. E enquanto anda, corre, sobe, salta, cai e fica de pé outra vez, sente-se tão à vontade neste mundo, tão alegremente confiante, tão indiferente ao perigo, que parece até ter esquecido da mãe.

Mas na verdade, a presença dela sempre acessível, em algum lugar, como fundo da paisagem é que permite essa liberação entusiasta. E embora haja então uma distância entre a criança e a mãe, ela é considerada possessão sua, tal como um apêndice. Entretanto, mais ou menos aos dezoito meses de idade, a criança já é capaz de entender as implicações da separação. É quando percebe o que é realmente: uma criança de um ano e meio, pequena, vulnerável e desamparada. É quando se defronta com o preço que deve pagar para viver por conta própria.

Imaginemos o seguinte: ali estamos, equilibrando-nos descuidados numa corda bamba, e talvez, para maior efeito, realizando um ou dois truques ousados, quando, de repente, olhamos para baixo e descobrimos – “Oh, meu Deus, veja aquilo” – que estamos nos equilibrando sem a rede de proteção.

Desaparece o senso de perfeição e de poder, criado pela ilusão de ser o rei do mundo, a estrela do espetáculo.

Desaparece o senso de segurança derivado da ilusão de que a criança tem como mãe uma rede de proteção.
Assim, o terceiro estágio do processo de separação-individualização resume-se no confronto e na solução de um grande problema: como poderá a criança arrojada, depois de conhecer o prazer de ficar de pé e andar sozinha, afastar-se da autonomia? Porém, como pode a criança, conhecendo os riscos da autonomia, ficar sozinha? Esse estágio, chamado de reaproximação, é a primeira tentativa para reconciliar a separação com a proximidade e a segurança.

Se eu for embora, morrerei?

E será que ela me deixará voltar para casa?

Em vários momentos de nossa vida enfrentaremos novamente esse dilema da reaproximação. Em várias ocasiões, perguntaremos: devo ir? Ou devo ficar? Em várias ocasiões definitivas – com nossos pais, nossos amigos, nossos parceiros no amor, nossos parceiros no casamento – lutaremos com questões de intimidade e autonomia.

Até onde posso ir e continuar em contato?

O que posso desejar – e o que desejo para mim mesmo?

Exatamente quanto de mim está preparado para desistir por amor, ou simplesmente por proteção?

Em vários momentos da nossa vida, podemos insistir: vou fazer sozinho. Vou viver sozinho. Vou resolver sozinho. Tomarei minhas decisões sozinho. E, tendo tomado essa decisão, é provável que nos sintamos mortos de medo de viver por nossa conta.

Podemos também repetir uma versão adulta de reaproximação. 

Pois, nas primeiras semanas da reaproximação, voltamos para nossa mãe. Exigimos sua atenção. Procuramos conquista-la, a infernizamos, a encantamos. Estamos tentando possuí-la novamente para eliminar a ansiedade da separação. Pensamos: não deixe de me amar. Talvez eu não consiga ter sucesso lá fora, sozinho.

O que sentimos é: Ajude-me!

Por outro lado, não queremos ajuda. Ou melhor, queremos e não queremos. E assim, assediados pelas contradições, ficamos firmes e saímos, continuamos e fugimos! Insistimos na condição de todo-poderoso e da nossa raiva – raiva! – em meio ao desamparo, e a ansiedade da separação torna-se mais intensa. Desejando ardentemente aquela doce união anterior, mas temendo a absorção; desejamos ser de nossa mãe, e ao mesmo tempo donos de nós mesmos; tempestuosamente passamos de um estado de espírito para outro, avançando e recuando – o modelo que é a quintessência da dupla intenção. 

Mais ou menos no fim do segundo ano de vida, cada criança, a seu modo, precisa começar a resolver a crise de reaproximação. Estabelecer uma distância perfeita e confortável entre ela e a mãe. Encontrar uma distância – não muito próxima, não muito remota – onde seja possível manter-se psicologicamente isolada.

Em cada estágio da separação-individualização, florescemos ou falhamos, crescemos ou encalhamos, ou ainda, recuamos. Em cada estágio há tarefas que devem ser realizadas. E embora cada ato de nossa vida seja determinado por várias forças diferentes – multi-determinado -, vivemos hoje, em parte, com o que aprendemos nessa fase.

Consideremos a desconfiada Alice, que mantém a uma certa distância amigos e amantes e para quem intrusão é a definição exata de intimidade, e que talvez esteja ainda se defendendo da mãe do estágio de aprendizado, aquela mãe implicante e onipresente sempre aparecendo para orientar, restringir, ajudar – e controlar.

E consideremos o passivo Ray, com medo do que qualquer afirmação de autonomia possa fazer mal, e até mesmo destruir as pessoas que ele ama, um homem cuja mãe simbiótica, toda ela beijos e abraços, tornou-se uma mulher triste e com instintos suicidas, logo que o garotinho começou a se libertar dela.

E consideremos Amanda, cuja mãe dominada e ineficiente era impotente demais para ajuda-la a viver por conta própria. Amanda, hoje uma mulher adulta, não consegue ainda sair da casa da mãe. E em sonhos sobe uma escada, com um terrível vazio atrás dela, um vazio completo, sem nada.

O que acontece quando se é empurrado para fora do ninho pela mãe, que não suporta a dependência infantil? Ou quando – com outra mãe, bem diferente – somos tratados com um bem, quando ficamos, e como o próprio mal, quando partimos? Ou quando nossas primeiras explorações são vistas com temores, como ameaças à nossa saúde, à nossa sobrevivência? Ou quando nós resolvemos: “para o diabo com você. Vou explorar, de qualquer modo”, e depois caímos de cara no chão e ela não nos ajuda a levantar?

O que acontece é que nos adaptamos, ou desmoronamos, ou entramos num acordo. O que acontece é que cedemos, ou conseguimos continuar, ou triunfamos. Seja qual for a solução encontrada, será reformada e elaborada por experiências posteriores. Mas, de um modo ou de outro, continuarão a nos moldar.

Não há dúvidas de que pessoas com histórias extremamente semelhantes emergem delas de modo extremamente diversos. Não há dúvida também que pessoas muito parecidas hoje chegaram a esse ponto vindas de lugares diferentes. No relacionamento humano não existem correlações definitivas e simples de a = b. Isso porque, além da educação, existe a natureza. Porque acrescentamos a todas as experiências da nossa vida as qualidades singulares e específicas com as quais nascemos.

Esse conceito de qualidades inatas ajuda a explicar por que Dave, cuja mãe é muito parecida com a de Ray, resistiu à chantagem do jamais-me-deixe-senão-morrerei, defendendo-se dela em casa e saindo o mais depressa possível, começando a trabalhar depois das aulas quando era ainda muito novo, colocando-se fora do alcance numa universidade distante – “A universidade o arruinou para mim”, disse ela certa vez – e finalmente casando-se com uma jovem discreta, com uma vida própria muito intensa, que podia amá-lo a distância sem grandes exigências. 

“Uma vez ou outra”, admite Dave, “sinto falta do seio macio e das carícias, da proximidade reconfortante. Quando minha mãe tomava conta, ela realmente sabia como tomar conta”. Ele está consciente das perdas que enfrentou para ganhar e preservar sua autonomia. Ele vive – às vezes não muito bem – com essas perdas.

No fim do segundo ano de vida, a criança já realizou uma grande parte da jornada da união para a separação, partindo da diferenciação, chegando ao aprendizado e depois à reaproximação. Esses estágios superpostos de separação-individualização terminam com um quarto estágio em aberto, durante o qual ela estabiliza as imagens interiores de si mesma e dos outros.

Não é uma realização simples.

Pois, no seu estado imaturo, não pode compreender a ideia estranha de que aqueles que são bons podem também ser maus. Assim, suas imagens interiores – da mãe e de si mesma – são divididas em duas.

Existe um eu todo bom – sou uma pessoa completamente maravilhosa.

E um eu todo mau – sou uma pessoa péssima.

Existe também a mãe toda boa – ela dá tudo de que a criança precisa.

E a mãe toda má – não dá nada do que é preciso.

Na primeira infância, aparentemente a criança acredita que esses eus e essas mães diferentes são pessoas diferentes.

Muitas mulheres e homens adultos jamais deixam de fazer isso, pessoas que vivem permanentemente sob uma forma de divisão dual, que – num grau menor – vivem num mundo rígido de categorias em branco e preto. Podem alternar entre um excessivo amor por si mesmos e um ódio excessivo pela própria pessoa. Podem idealizar os amantes e os amigos. E então, quando os amantes e os amigos comportam-se normalmente, como seres humanos imperfeitos, elas os expulsam de suas vidas: “Você não é perfeito. Você falhou comigo. Você não presta. Você é chave de cadeia”.

Essa divisão é feita também pelos pais que escolhem um filho para ser Caim e outro para ser o Abel. E por amantes, para quem as mulheres são mandonas ou prostitutas. E por líderes que não admitem dissenção: “você está comigo ou contra mim”. E às vezes por aquelas pessoas geniais com o coração repleto de maldade – os “médicos e monstros”.

Aparentemente a divisão rígida em duas partes é universal nos primeiros anos de vida. Defendemos o bem mantendo afastado o mal. Colocamos nossa raiva de quarentena, temendo que os sentimentos de ódio destruam os que amamos. Porém, gradualmente aprendemos – quando há confiança e amor suficiente – a viver com a ambivalência. Gradualmente aprendemos a reparar a separação. 

Evidentemente, um universo de bem-mal, certo-errado, sim-não, ligado-desligado proporciona uma tranquilizadora simplicidade. E certamente, até as pessoas consideradas normais permitem-se uma divisão desse tipo uma vez ou outra. Porém, abandonar nossas temerosas simplificações infantis de preto e branco a favor das difíceis ambiguidades da vida real é outra das nossas perdas necessárias. E nesse abandono existem ganhos valiosos:

Pois a mãe odiosa que nos abandona, e a mãe amada e amorosa que nos abraça ternamente, são vistas agora como uma só, não duas mães diferentes. A criança má e desprezível, e a criança digna de ser amada, unem-se numa única imagem do nosso eu. Começamos a ver o todo das pessoas, não apenas suas partes – o trivial mas magnífico ser humano. E conhecemos então um eu no qual os sentimentos de ódio podem conviver com sentimentos de amor.

A tarefa jamais é completada – durante toda a vida, cortamos e separamos essas imagens interiores. E às vezes vemos somente preto, e outras vezes, somente branco. Até o dia de nossa morte, continuamos a fazer a revisão do nosso “eu”. Porém, entre dois e três anos, o mundo interno da criança começa a adquirir uma certa medida de constância.

Autoconstância: uma imagem mental integrada e duradoura de um “eu”. 

E a constância do objeto: a imagem interior da mãe, completa e bastante boa, uma imagem que pode sobreviver à raiva e ao ódio, uma imagem – e isto é crucial – capaz de proporcionar o senso do amor, da segurança, do conforto que nossa mãe real antes proporcionava.

Nos encontros diários da infância com a mãe amorosa e bastante boa, a criança sentia-se segura, tanto física quando emocionalmente. E à medida que as evocamos, as lembranças dessa atenção benigna tornam-se de tal modo parte de nós mesmos, que a necessidade que temos de nossa mãe vai diminuindo gradualmente. Só podemos ser nós mesmos quando adquirimos esse ambiente interior de sustentação, proporcionado pela mãe e por outros, depois. E embora os grupos das lembranças que criam nosso mundo interior estejam geralmente fora do alcance da nossa consciência, podem às vezes – como nesta experiência – ser recapturados.

Uma mulher durante a análise começou a descobrir a saborear a própria força. Possuía recursos com os quais jamais sonhara. Para sua grande surpresa, viu que era capaz de literalmente visualizar essa força. Mas a imagem formada em sua mente era, por mais estanho que pareça, uma estrutura desconhecida de madeira com quatro lados, que fazia pressão dentro do seu peito.

Seguindo o sistema da psicanálise, ela aplicou a associação à imagem e descobriu que era uma prensa para raquetes de tênis, o que a deixou perplexa por algum tempo, uma vez que não jogava tênis nem gostava desse esporte. Contudo, associações continuadas a levaram a prensa de raquete... a flores prensadas... a borboletas prensadas, e uma lembrança desabrochou em sua mente: a da enfermeira que havia tratado dela quando era uma criança muito doente e apavorada. A lembrança de uma enfermeira amorosa e gentil, que todos os dias mostrava à menina a figura de uma borboleta que as sombras do sol da tarde formavam na parede do quarto.

A borboleta prensada dentro dela permaneceu como uma lembrança duradoura – a lembrança do amor consolador da enfermeira. Ajudando-a suportar aquele tempo no hospital com dores – exatamente – no peito.

Ajudando-me agora, nos meus esforços de viver a minha vida.


Judith Viorst


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Ainda faltam alguns capítulos... 





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