terça-feira, 11 de outubro de 2011

A CONEXÃO FINAL - PERDAS NECESSÁRIAS por Judith Viorst

Por mim e pela minha filha, Maria Eduarda Carrilho
Roberta Carrilho




A CONEXÃO FINAL:

Todas as nossas experiências de perdas, relacionam-se com a Perda Original, a da conexão mãe-filho. Pois, antes começarmos a encontrar as separações inevitáveis da vida quotidiana, vivemos num estado de identificação completa com nossa mãe. Esse estado ideal, esse estado sem fronteiras, esse sou-você-você-é-eu, esta “fusão harmoniosa interpenetrante”, esse “Eu estou em você, você está em mim”, esse isolamento à prova de frio, de solidão e das intimações de imortalidade. Uma condição conhecida por amantes, santos, psicóticos, viciados em drogas e bebês. É o que chamamos de bem-aventurança.

Nossa conexão original de bem-aventurança é a ligação umbilical, a identificação biológica no útero. Fora do útero experimentamos a ilusão gratificante de que compartilhamos com nossa mãe uma fronteira comum. Nosso desejo eterno de união, dizem alguns psicanalistas, dá origem ao nosso desejo de volta – de volta, se não ao útero, pelo menos ao seu estado de união ilusória, chamada simbiose, um estado “pelo qual, bem no fundo do inconsciente original e primitivo... todo ser humano anseia”.

Não temos lembranças consciente da nossa vida no útero – nem de como o deixamos. Mas um dia foi nosso e tivemos de abandoná-lo. E embora o jogo cruel de desistir do que amamos, para crescer, seja repetido a cada novo estágio de desenvolvimento, esta é a nossa primeira e talvez a mais difícil renúncia.
A perda, o abandono, a desistência do paraíso.

E embora não nos lembremos, também jamais esqueceremos. Reconhecemos um paraíso e um paraíso perdido. Reconhecemos um tempo de harmonia, de integração total, de segurança inviolável, amor incondicional... e um tempo em que essa integração foi irrevogavelmente rompida. Reconhecemo-lo na religião e no mito e nos contos de fadas, nas nossas fantasias conscientes e inconscientes. Nós o reconhecemos como realidade e como sonho. E enquanto protegemos ferozmente as barreiras do eu que demarcam claramente a divisão entre você e eu, desejamos também recapturar o paraíso perdido daquela conexão perfeita.

Nossa busca dessa conexão – da restauração da integração total – pode ser um ato de doença ou de saúde, pode ser uma fuga temível do mundo ou um esforço para expandi-lo, pode ser deliberada ou inconsciente. Por meio do sexo, por meio da religião, da natureza, da arte, por meio das drogas, da meditação, até com exercício físico, tentamos obscurecer as fronteiras que nos separam. Tentamos escapar da prisão da separação. Às vezes conseguimos.

Às vezes, em momentos fugazes – momentos de êxtase sexual, por exemplo – voltamos àquela integração, embora só algum tempo depois. “Depois do amor”, como diz o belo poema de Maxine Kumin, só depois é que podemos compreender onde estivemos:

Depois, o compromisso.
Os corpos retomam suas fronteiras.
Essas pernas, por exemplo, minhas.
Seus braços o trazem de volta.
Nossos dedos, nossos lábios
Admitem sua propriedade.
Nada mudou, exceto
o momento em que
o lobo, o lobo ávido
que fica fora do eu
deita-se suavemente, e dorme.

Argumenta-se que essa experiência – a completa união física que o ato sexual pode nos proporcionar – leva-nos de volta à integração total da nossa infância. Na verdade, o analista Robert Bak define o orgasmo como “o compromisso perfeito entre o amor e a morte”, o meio pelo qual reparamos a separação entre mãe e filho através da extinção momentânea do próprio eu. É verdade que bem poucos vão para a cama com a presença de encontrar a mamãe entre os lençóis. Mas a perda sexual da nossa separação (capaz de assustar tanto a algumas pessoas a ponto de impedi-las de chegar ao orgasmo) nos dá prazer, em parte, porque, inconscientemente, estamos repetindo aquela primeira conexão.

Sem dúvida, Lady Chatterley nos deixou para sempre a visão da bem-aventurança autodissolvente do orgasmo, como “ondas que rolam uma depois da outra para longe de nós mesmos”, até “ser tocado o centro de todo seu plasma, até ela se sentir tocada... e até partir”. Outra mulher, descrevendo experiência semelhante da perda do próprio eu, diz: “Quando me satisfaço tenho a impressão de ter voltado para casa”.
Mas o orgasmo não é o único meio de extinção do eu, de pôr para dormir o lobo ávido. Existem estradas diferentes e variadas que nos levam para além das fronteiras pessoais. 

Outros, a união harmoniosa pode ser alcançada por meio do mundo natural, por meio da demolição do muro que separa o homem da natureza, permitindo que algumas pessoas – de vez em quando – “voltem da solidão do individualismo para a conscientização da unidade com tudo o que existe...” Existem os que jamais sentiram essa união com a terra, o céu e o mar, e aqueles que – como Woody Allen – sempre afirmaram: “Eu e a natureza somos dois”. Mas alguns homens e algumas mulheres encontram consolo e alegria não só em ver, mas também em ser a natureza – em ser, temporariamente, uma parte da “vasta harmonia que envolve o mundo”.

A arte pode também – às vezes – apagar a linha que separa o observador da obra observada, naquilo que Annie Dillard chama de “momentos puros”, momentos em que “fiquei plantada, boquiaberta, renascida, na frente de um determinado quadro, naquele rio, mergulhada até o pescoço, ofegante, perdida, retrocedendo para a profundeza da aquarela... encantada, abismada, e tive de ser literalmente trazida para a tona”.

Há certas experiências religiosas que podem criar também um estado de integração total. Na verdade, a revelação religiosa pode penetrar a alma tão inexoravelmente que – nas palavras de Santa Teresa – “quando ela (a alma) volta a si, é completamente impossível duvidar que esteve em Deus e que Deus esteve nela”.

A união mística é possível por meio de várias experiências transcendentais. A união mística põe um fim ao eu. E seja essa união entre um homem e uma mulher, entre o homem e o cosmos, entre o homem e uma criação artística do homem e de Deus... ela repete e restaura – por momentos breves e perfeitos – a sensação oceânica da conexão mãe-filho, onde “o eu, e o nós, o tu, não podem ser encontrados, pois no Um não pode haver distinção”.

Contudo, precisamos fazer algumas distinções: entre o psicológico e o santo. Entre o fanático e o verdadeiro religioso. Podemos questionar a legitimidade da união cósmica inspirada em drogas ou em bebida, e duvidar da veracidade dos cultistas de manto e sandália que exclamam: “Extasiado, eu me fundi com a massa, e saboreei o prazer glorioso que acompanha a perda do ego”.

Em outras palavras, podemos dizer que a união absoluta é boa quando não é demente, desesperada ou permanente – é ótimo desaparecer temporariamente dentro de um quadro, não é bom desaparecer para sempre dentro de um culto. Provavelmente, aceitamos com maior facilidade as experiências divinas de Santa Teresa do que a dopada união com Deus de um viciado em drogas. E vamos diferenciar a vida sexual de um adulto mais ou menos saudável do sexo que é apenas simbiose, do sexo que nada mais é do que uma fuga assustada da separação.

Pois os analistas nos dizem agora que o orgasmo vaginal, antes considerado como o marco definitivo da maturidade sexual feminina, pode ser experimentado com enlevo por mulheres gravemente perturbadas, que se integram à fantasia não com um homem, mas com a mãe. Os homens também procuram as mães no sexo. Um paciente relata que, sempre que começa a “pensar loucamente”, pode aliviar essa “loucura” pagando uma prostituta para se deitar nua com ele e abraça-lo até sentir que está se “fundindo no corpo dela”.

Evidentemente, essa fusão pode ser às vezes apenas simbiose – a volta desesperada à infância insegura e dependente. Na verdade, ficar preso – fixar-se – na fase simbiótica ou voltar – regredir – a essa fase por meios que dominam nossa vida é indicação de perturbação emocional. A doença mental grave chamada psicose simbiótica da infância, e grande parte da esquizofrenia do adulto também, são consideradas como fracassos na tentativa de manter as fronteiras que separam o indivíduo dos outros. O resultado é que “eu não sou eu. Você não é você, e você também não é eu; eu sou, ao mesmo tempo, eu e você, você é ao mesmo tempo você e eu. Não sei se você é eu, ou eu sou você”.

Na fase mais insana, essa fusão de você e eu pode ser frenética, assustada e furiosa, mais colorida de ódio que de amor. O sentimento é: “Não posso viver com – ou sem – ela”. O sentimento é: “Ela está me sufocando, mas sua presença me faz real, permite-me sobreviver”. Na fase mais insana, com a intimidade intolerável e a existência em separado parecendo impossível, a união completa pode não ser uma benção, mas uma necessidade furiosa.

Estamos falando de doença séria – de psicose. Mas problemas com a simbiose podem também produzir dificuldades emocionais menos extremas.

Vejamos o caos da Sra. C., atraente e infantil aos trinta anos, que dormiu com a mãe até os vinte anos, quando, encontrou um homem tolerante, feminino com quem se casou. A Sra. C. mora no apartamento acima do da mãe, a qual faz todo o serviço doméstico da filha, e de um modo geral, governa a vida dela. A Sra. C. não pode pensar em se mudar para um lugar mais conveniente sem sentir-se fisicamente mal. A Sra. C. tem uma neurose simbiótica, pois, ao contrário das crianças com psicose simbiótica, seu desenvolvimento é normal nas partes importantes. Contudo, em outros setores ela se comporta, e inconscientemente vê a si mesma como uma metade de um par simbiótico. Inconscientemente também teme que, se esse par for separado, nem ela nem a mãe sobreviverão. 

Desde o começo de sua vida, a Sra. C. compartilhou com a mãe um relacionamento simbiótico de ansiedade e dependência. Não é de admirar, observamos sabiamente, que não possa se libertar. Porém, até a mais saudável união mãe-filho pode impedir a separação subsequente, como observa o analista Harold Searles: “Provavelmente, a principal razão da nossa resistência para desenvolver uma identidade individual é o fato de sentirmos que esse desenvolvimento se interpõe, cada vez mais, entre nós e a mãe com quem compartilhamos uma união total”.

Devemos contar entre as perdas necessárias a desistência dessa união total.

Jamais desistiremos enquanto desejarmos recuperá-la.

Sim, temos desejos de união absoluta, mas para alguns homens e mulheres – não especialmente insanos – esses desejos podem dominar secretamente suas vidas, penetrando em todos os seus relacionamentos importantes e influenciando todas as suas decisões. Uma mulher, tentando escolher entre duas atraentes propostas de casamento, fez a escolha certa noite, durante o jantar, quando seu acompanhante deu a ela – como sua mãe – uma colherada de comida na boca. A promessa tentadora e tácita de gratificações infantis imediatamente pôs um fim à sua indecisão. Casou-se com ele.

O analista Sydney Smith diz que para essas pessoas – em contraste com o resto de nós – o desejo universal pela união completa não foi eliminado de modo benigno. Ele se estabelece como uma “fantasia dourada” central, tenaz, modeladora da vida, a qual, durante o tratamento psicanalítico, só pode ser revelada lenta e relutantemente.

“Sempre senti”, diz um dos pacientes do Dr, Smith, “que em algum lugar distante existe uma pessoa que fará tudo por mim, alguém que vai satisfazer todas as minhas necessidades de modo mágico, e como num conto de fadas providenciar para que eu tenha tudo o que desejo, sem nenhum esforço da minha parte... Durante toda a minha vida, essa ideia esteve comigo, bem no fundo da minha mente. Não sei se serei capaz de viver sem ela”.

Viver com fantasias douradas de uma infância sem fim pode ser uma recusa neurótica ao crescimento. Mas o desejo momentâneo de união completa, o desejo de, uma vez ou outra, anular as diferenças entre o outro e nosso eu, a vontade de recapturar o estado mental que se parece com a união da infância com nossa mãe, não é, por si mesmo, anormal ou indesejável.

Pois experiências de união completa podem servir como alívio para a solidão da separação.

E experiência de união completa podem nos ajudar a transcender nossos antigos limites, podem nos ajudar a crescer.
Os analistas chamam de “regressão a serviço do ego” a volta construtiva a um estágio anterior de desenvolvimento. Isso significa que, dando um passo atrás, às vezes podemos ajudar o avanço do nosso desenvolvimento. “Imergir para emergir”, diz o psicanalista Gilbert Rose, “pode ser parte do processo fundamental do crescimento psicológico...”

Num livro interessante, intitulado A Procura da Unidade, três psicólogos fazem afirmações espantosas sobre os benefícios em potencial das experiências de união. Apresentam uma hipótese, baseada em experiência de laboratório, segundo a qual a indução das fantasias do tipo simbiótico – fantasias de união total – podem ajudar os esquizofrênicos a pensar e agir mais normalmente e, com a ajuda da de técnicas de modificação do comportamento, pode melhorar o desempenho de estudantes na escola, aliviar os temores do fóbicos, ajudar fumantes a deixar o cigarro, alcoólatras a deixar a bebida, e os que precisam fazer dieta, a passar sem a comida!

Esses resultados, na realidade, foram produzidos, dizem os autores, em experiências controladas, nas quais os indivíduos ficaram expostos a uma mensagem subliminar (mensagem apresentada com tanta rapidez que o observador não tem consciência de tê-la visto), que dizia:

“MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ”.

O que estavam fazendo os pesquisadores? E por que exatamente pensam que funcionou?

Já vimos que os desejos da união total persistem na vida adulta, e que – como a Sra. C. e a senhora que recebeu comida na boca claramente demonstram – podem geralmente motivar com intensidade o comportamento. Sendo assim, os autores argumentam que, se o desejo não satisfeito da união total pode produzir comportamento psicótico e outras perturbações, talvez a satisfação – fantasiosa – desse desejo de ser alimentado, protegido, aperfeiçoado, ter segurança, pode produzir uma vasta gama de efeitos benéficos.
A solução, nesse caso, seria procurar a satisfação na fantasia. Como?

Como o sonho que esquecemos ao acordar, mas que nos deixa com a boa ou má sensação durante o dia todo, as fantasias nos afetam fora na nossa percepção consciente. E a fantasia da união total pode ser ativada, dizem os autores, pela mensagem subliminar de “MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ”. Os autores demonstram a seguir que, com algumas exceções importantes, a mensagem produz sentimentos agradáveis e uma mudança positiva, o que provar o valor psíquico das fantasias de união total.

Um exemplo: dois grupos de mulheres obesas iniciaram uma dieta, seguindo um programa de emagrecimento. Os dois grupos perderam peso. Mas as mulheres do grupo exposto à mensagem subliminar de união total perderam mais que as do outro.

Outro exemplo: adolescentes perturbados, em tratamento num centro residencial, submeteram-se a testes de leitura; os resultados foram comparados aos obtidos no ano anterior. Todo o grupo apresentou melhora, mas o resultados dos que foram expostos à mensagem de união total foram quatro vezes melhores que os do outro grupo.

Ainda outro exemplo: um mês depois do término de um programa para ajudar a deixar de fumar, verificaram quantos ainda não estavam fumando. O resultado foi 67% dos que haviam sido expostos à mensagem de “MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ”, e 12,5% dos que não foram expostos à mensagem.

Não acho que devemos concluir que a mensagem subliminar de “MAMÃE E EU SOMOS UM SÓ” será terapia do futuro. Nem, como vimos, tem como objetivo dar um pouco de união total à nossa vida. Na cama, na igreja, nos museus de arte, em momentos de inesperada queda das barreiras, gratificamos nosso desejo permanente de união total. Essa gratificação passageira, essas fusões, são experiências valiosas que aprofundam, e não ameaçam nosso senso do eu.

“Ninguém”, escreve Harold Searles, “pode ser tão completamente individualizado, tão completamente ‘amadurecido’ a pondo de perder a capacidade para o relacionamento simbiótico.” Porém, às vezes temos a impressão de tê-la perdido. Às vezes o lobo, o lobo ávido que fica fora do eu, recusa-se a baixar a guarda, recusa-se a dormir. Às vezes sentimo-nos apavorados demais para permitir que ele durma.

Sem dúvida, uma união que implique o aniquilamento do eu pode gerar ansiedade de aniquilamento. Dar a nós mesmos, entregar-nos por amor ou qualquer outra forma de paixão – pode nos parecer uma perda e não uma vantagem. Como podemos ser tão passivos, tão possuídos, tão sem controle, tão... não vamos enlouquecer? E como poderemos nos encontrar novamente? Consumido por essas ansiedades, o indivíduo pode erguer barricadas, não fronteiras. Isolando-se de qualquer ameaça à sua inflexível autonomia. Isolando-se de qualquer experiência de entrega emocional.

Contudo, o desejo de recuperar a bem-aventurança da união total mãe-filho- aquela perfeita conexão – jamais é abandonado. Nós todos vivemos, num nível subconsciente, como se nos tivéssemos tornado incompletos. Embora a ruptura da unidade primária seja uma perda necessária, permanece como “um ferimento incurável, que aflige o destino de toda a raça humana”. E falando conosco através dos sonhos que sonhamos, das histórias que criamos, a imagem da reunião persiste e persiste – e limita nossa vida.

A força que está por trás do movimento do tempo é um lamento que não pode ser consolado. Por isso, o primeiro evento é tido como uma expulsão, e o último, a esperança da reconciliação e da volta. Assim a lembranças nos impulsiona, assim a profecia é apenas uma lembrança brilhante – haverá um jardim onde nós todos, como um só criança, dormiremos na nossa mãe Eva...



Judith Viorst


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Ainda faltam alguns capítulos... 





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