quinta-feira, 25 de março de 2010

A ÁGUIA E A GALINHA (PARTE VI) - Leonardo Boff (uma metáfora da condição humana)

PARTE VI (FINAL)

O SOL: EXPERIÊNCIA DO NUMINOSO E DO CENTRO: Recordemos a importância do Sol para a natureza da águia. Não foram suficientes os mestres, o empalhador, o naturalista e seus esforços para despertar a natureza interior da águia. Enquanto o Sol não renasceu em seus olhos e, a partir daí, em seu coração, a águia não pôde voar. com o Sol dentro de si, sentiu firmeza. Abriu as potentes asas. Mediu os espaços. E aventurou-se ao vôo libertador.

Qual a importância do Sol na vida das pessoas? O Sol é o astro-rei de nosso sistema planetário. Mas é também o grande símbolo transcultural que capitaliza as questões ligadas à síntese viva. Síntese que deve irradiar luz e calor. E encher de significação a vida humana.

O Sol possui a função de um arquétipo central. Vem associado à ordem e à harmonia de todas as energias psíquicas. Como o Sol atrai em órbita todos os planetas de seu sistema , assim o arquétipo-Sol sateliza ao seu redor todas as significações. Ele é o Centro vivo e irradiante de nossa interioridade. E no centro do Centro está a imagem de Deus, o próprio Deus. O Sol representa por excelência o Numinoso* em nós, que as religiões afro-brasileiras chamam de axé.                                                
*Numinoso = vem do latim numen que significa a divindade. É sinônimo de sagrado, de fogo interior. Estado de consciência de quem teve uma experiência de encontro e de união com a Suprema Realidade.

Todos fazemos a experiência do Numinoso. É aquela experiência que nos toma e nos envolve totalmente. Por isso também possui enorme potencial transformador. A experiência de enamoramento e de paixão entre duas pessoas que se amam é uma experiência do Numinoso. A experiência de encontro profundo com alguém, que nos lançou uma luz no meio de uma crise existencial, representa uma experiência do Numinoso. O choque vital com alguém cheio de carisma, que irradia por sua palavra profética, por sua ação corajosa e por sua personalidade terna e ao mesmo tempo vigorosa, nos comunica uma experiência do Numinoso. A experiência da Presença do Divino e do Sagrado por detrás de todas as coisas e do universo. Presença que se sente no fundo dos olhos de uma criança. E dentro de nosso coração: eis, por excelência, a eclosão do Numinoso.

O Numinoso não é uma coisa. Mas uma ressonância das coisas dentro de nós e que, por isso, se fazem preciosas. Apresentam-se como valores e como símbolos que falam dentro de nossa profundidade. Porque são símbolos, sempre remetem para além deles, para uma outra dimensão, para um inefável percebido pela consciência. Inefável que tudo sustenta e ordena. As coisas, além de continuar a ser o que são, transmutam-se em realidades simbólicas sacramentais. Por isso elas, de um lado, nos atraem e nos fascinam e, de outro, nos enchem de respeito e de veneração. Elas produzem em nós um novo estado de consciência. Alargam as dimensões de nossa percepção e do nosso coração.

Esse Numinoso constitui nosso Sol interior, nosso Centro irradiador. O Centro é um dado da totalidade de nossa vida que se impõe por ele mesmo. Ele fala dentro de nós. Ele nos adverte. Ele nos apóia. É o nosso mestre interior, grande ancião/anciã que sempre nos acompanha. Ele é indestrutível. É o melhor, o mais sagrado, o mais sacrossanto e o mais insondável de nós mesmos. É o nosso Mistério que toca no Mistério do mundo e no Mistério de Deus.

Pelo fato de irradiar e de aquecer, este Centro é identificado com o Sol. Os principais místicos testemunham a presença dessa inefável realidade solar dentro da alma. Santa Teresa d'Avila, a grande mística espanhola do século XVI, escreveu: "o Sol resplendente está sempre dentro da alma e nada pode arrebatar sua magnificência", ou "ele está sempre presente para nos dar o ser".

O ser humano pode fechar-se aos chamados desse Sol e desse Centro. Pode querer negá-lo. Mas jamais poderá aniquilá-lo. Ele sempre estará aí como uma realidade imanente à alma. Ele constitui o fundamento da dimensão espiritual do ser humano. E a base antropológica da espiritualidade.

A vida espiritual possui em nós o estatuto de uma energia originária  De um instinto com a mesma cidadania que o instinto sexual, o instinto de saber, o instinto de poder, o instinto de violar os tabus e o instinto de transcender. Note-se, não se trata de um instinto qualquer, um entre tantos. Mas de um instinto fundamental, articulador de todos os demais.

Repitamos, a vida espiritual traduz um dado antropológico objetivo, preexistente à consciência e independência de nossa vontade. O ser humano possui naturalmente interioridade. E essa interioridade é habitada por um Sol e pelo Numinoso.

Os mestres espirituais e outros analistas das profundezas da alma humana chamaram a esta interioridade e a este Sol central também de Imago Dei (imagem de Deus) ou a própria Presença Divina em nós. Os místicos ousam mais e dizem: Temos Deus dentro de nós. É tão unido a nós que Ele é a nossa própria profundidade. Somos Deus por participação.

Se assim é, então devemos reconhecer que nos adquirimos a vida espiritual. Ao contrário, nós nos descobrimos radicalmente dentro dela. Podemos abrir-no mais e mais a ela. Como ensina Santa Teresa d'Ávila, podemos predispor nossas moradas interiores a receberem mais luz. Mas em Deus sempre vivemos. Em Deus nos movemos. Em Deus somos. A Ele nunca vamos. Dele nunca saímos. Nele sempre nos encontramos.

Ser plenamente humano comporta vivenciar esta realidade espiritual. Deixar que ressoe dentro de nós, para sentir que somos habitados pela Energia criadora dos Céus e da Terra, para que possamos brilhar e voar. Ela nos está gerando a cada momento. Ela nos tira de seu coração de Mãe e de Pai originários e nos coloca amorosamente no mundo.

O cuidar do Ser se transforma, então, num amar o Ser. Entrar em comunhão em Ele. Tornar-se um com Ele. Cuidar do Ser significa continuamente fazer o esforço de passar do Deus que temos nas espiritualidades, nas religiões e nos discursos institucionais do sentido, para o Deus que somos na nossa radical profundidade. Lá onde tudo se encontra, se religa e por isso se faz uno, diverso, convergente e irradiante de vida.

A águia sentiu emergir dentro de si esse Sol. Na força de sua irradiação e de seu calor, religou todas as suas memórias pretéritas. Articulou todas as forças escondidas. Recuperou o elo perdido do seu passado de águia perfeita. E entrou num novo ser e num novo estado de consciência. Voou e voou para o alto. Voltou a ser águia. Em plenitude.

O REENCONTRO NO GRANDE ÚTERO: O termo da caminhada da águia é sua percepção no céu. Ela voou até fundir-se com o azul do firmamento. Qual é a meta derradeira do ser humano? Qual é o seu destino terminal? Não é a permanência na dualidade na errância como se caminhasse sem fim numa direção sempre mais para frente. Sem nunca saber-se pode chegar e onde chegar. Ele é um projeto infinito. Somente a fusão com o Infinito permite a realização do projeto infinito. E assim fazê-lo descansar.

Há no ser humano um apelo para a unificação, para a comunhão com todas as coisas e para ser um com elas. É a nossa inarredável saudade do momento em que estávamos todos juntos, naquele ponto matemático inimaginavelmente pequeno, antes do bing-bang inicial. Aí éramos energia originária com imensas virtualidades de relação e de realização. E então houve a explosão. Tudo se expandiu e tudo interagiu criando as ordens primordiais. Chegamos até as grandes estrelas. Em seu seio se formaram em milhões e milhões de anos, todas as partículas que compõem atualmente o universo e cada um de nós. Num dado momento, essas grandes estrelas vermelhas explodiram. Seus materiais se espalharam por todo o espaço cósmico. Nasceram as galáxias, as estrelas de segunda grandeza, os planetas, os satélites, os primeiros organismos vivos que evoluíram em complexidade e interiorização até se tornarem autoconscientes em nós, seres humanos. Nascemos do coração das grandes estrelas. Por isso existimos para brilhar. Pois carregamos dentro de nós o brilho originário dessas estrelas.

Esta unidade originária nunca se perdeu em nós. Ela permanece como memória cósmica de um útero que tudo acolhe. Ele está na origem e se mostra como saudade bem-aventurada. Está também no termo da peregrinação e se revela como esperança imorredoura. O Útero inicial é também o Útero terminal. Deus está no começo, no meio e no fim.

Et tunc erit finis, e então será o fim. Será o fim quando implodirmos e explodirmos para dentro do Abismo insondável de realização e de bem-aventurança, Deus. Então seremos unos no Uno. Convergentes na fusão. E diversos na comunhão. A Fonte de Energia originária estará totalmente em nós. E nós totalmente nela. Eis o verdadeiro panenteísmo*.
*Panenteísmo = doutrina religiosa; afirma que Deus está em tudo e tudo está em Deus. Guardam-se as diferenças entre Deus e as criaturas, mas se acentua sua mútua presença. Não deve ser identificado com panteísmo*.
*Panteísmo = doutrina segundo a qual não há outra realidade senão Deus. Tudo é Deus, as pedras, os animais, o ser humano e o universo, sem distinção. Não deve ser confundido com panenteísmo.


Nós não somos Deus, no sentido simples e direto da palavra. Isso significaria panteísmo, que não respeita as diferenças entre criatura e Criador. Nós estamos em Deus. E Deus está em nós. Eis o panenteísmo que respeita as diferenças. E postula a interpenetração e mútua presença das diferenças. Somos diferentes para permitir a mútua relação. Para podermos estar juntos na comunhão.

Não é esse o sentido secreto do mistério da encarnação vista a partir do cristianismo? Deus se fez humano para que o humano se fizesse Deus. O Mestre Eckhart* na verdade, o maior místico cristão de todos os tempos, ensinava, ainda no século XIV: "Deves conhecer a Deus sem imagens e sem semelhanças. Deve conhecê-lo diretamente. Se eu quiser, no entanto, conhecer a Deus diretamente, devo fazer-me Ele e Ele deve fazer-se eu".
* Eckhart, Mestre (1260-1328): místico alemão, da ordem dos dominicanos. Sustentava que Deus vive no coração das pessoas e lá, como Pai, nos gera como seus filhos e filhas na força do Espírito Santo.

A experiência dos místicos vai no sentido da identificação do ser humano com Deus. Quer dizer: da ação com a qual o ser humano e Deus se identificam. Ficam identificados, uma experiência de não-dualidade e de mútuo amor.

Um mestre da mística muçulmana dizia: "Teu Espírito se misturou com o meu, como o vinho se uniu com  a água. Por este Espírito, quando uma coisa te toca, me toca a mim também. Tu és eu em tudo. E basta de separação".
A Suprema Realidade pode ser comparada a um ilimitado mar-oceano de ser, de vida e de amor. Nós somos apenas ondas destes mar-oceano. A onda é e não é o mar. É o mar porque sem o mar não há onda. Não é o mar porque é dele uma manifestado, entre outras. O mar é sempre maior do que suas ondas e suas manifestações.

A onda é o mar-oceano manifestado, o mar-oceano que se realiza numa consciência pessoal. Há ondas que se esquecem de que são o mar-oceano manifestado. Entendem-se a si mesmas, independentes, sem referência ao mar-oceano.

Há ondas que sabem que vêm do mar-oceano. São expressões do mar-oceano e voltam ao mar-oceano.

Estas são felizes. Vivem a diferença. E a união na diferença.

Necessitamos, portanto, oceanizar nossa existência. Vivenciar a Fonte donde tudo jorra e onde tudo deságua. Caminhar à luz do Sol primordial. Regressar ao seu Seio luminoso.

Eis o termo da jornada humana: a autotranscedência. O mergulho no insondável Mistério de vida, de consciência, de comunhão e de amor. Como a águia que mergulhou no azul infinito do firmamento. Finalmente, a águia e a galinha, a mente e o coração, o Céu e a Terra, o ser humano e Deus se tornaram uma única Realidade, una, diversa, complexa e comunional.



Leonardo Boff -
A águia e a Galinha
(uma metáfora da condição humana)










Leia também:

PARTE I - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE II  - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE III - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE IV - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE V - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)

PARTE VI - A águia e a Galinha (uma metáfora da condição humana)



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